por Gajo de Alfama
Às 9h00 do Sábado, recebo uma ligação de um amigo que acabava de chegar ao aeroporto do Porto.
Há dez anos sem ver Flávio, fui encontrá-lo aos pés da estátua do cavalo em frente à Igreja da Sé.
Cheguei à cidade invicta às 14h30.
Reencontrá-lo me rememorava dos tempos de adolescência, uma época nada politicamente correta. Estava a desenterrar momentos quase esquecidos, guardados nas poucas fotografias que me restaram da era pré-máquina digital.
Fomos para o hotel e esperamos a banda de axé chegar.
Peguei um autógrafo da Ivete Sangalo, e fui com Flávio no camarote VIP – onde entramos de graça no show que marcamos de assistir.
Depois de duas doses de uísque e treze croquetes, resolvi tentar a sorte no meio da multidão.
Atravessando o primeiro, o segundo e o terceiro grupo de mulheres, encontro amigos conimbricenses e fico conversando com eles.
Entretanto, passando mal com a claustrofobia musical e do ambiente, começo a suar frio. Não havia almoçado nem jantado e estava tonto, a ponto de desmaiar. Saio para rua e vou respirar um ar puro. Olho o relógio do telemóvel. Ainda são 2h00 e o primeiro comboio para Coimbra sai, somente, às 6h00.
Às 4h30, consigo uma carona para Aveiro. Metade do caminho percorrido.
Chegando à estação de comboios, me aproximo de um grupo de pessoas que dormia nos bancos gélidos da sala de espera.
Para minha surpresa, gente conhecida. Eram uma brasileira, uma espanhola e um belga moradores da melhor e mais acolhedora República de Coimbra.
Tomamos um café da manhã numa padaria milagrosamente aberta e voltamos dormindo nos bancos do comboio.
Acordei de um sono pesado com a voz de uma gravação anunciando a nossa chegada em Coimbra-B. Naquele momento, me sentia como se tivesse acordado no meu antigo quarto, na casa dos meus pais.
Inspirado pela cor roxa do amanhecer da Rua das Matemáticas, refleti sobre essa noite incomum, com pitadas de surrealidade.
Numa delas conclui que minha vida de solteiro aos 30 anos, jamais pode ser a mesma de quando tinha 16.
Não tenho mais fígado, nem pernas, nem disposição para isso.
Além disso, meu gosto mudou. Realmente me incomodo profundamente com esse estilo de música. Prefiro, muito mais, estar sentadinho em frente à mesa do Jorge, no Diligências, do que presenciar outro mega-evento desses.
E fui dormir pensando em como a vida traça caminhos totalmente diferentes para pessoas que aos 16 anos eram tão próximas.
Algumas decisões me levaram a estar aqui hoje, em Coimbra. Não me sinto melhor que ninguém com isso. Muitas delas foram frutos do acaso, do apoio de amigos e do fim de um casamento.
Contudo, às vezes, num lance do destino, vejo que poderia ter me tornado, não um estudante de doutoramento, mas um médico de resgate, um assessor parlamentar, um dono de uma mercearia, ou, quem sabe até, um guitarrista de punk rock.
A minha carta, entretanto, não foi uma dama de paus, nem um três de espada. Foi um valete de copas.
Se eu tivesse escolha, não puxaria essa carta.
Eu preferiria ser Gheorghe Hagi.